É incrível acompanhar como os momentos significativos tanto politica quanto socialmente refletem nas produções artísticas, sobretudo o cinema. A mulher, o negro, o muçulmano. Pelo menos nós finalmente estamos nos dando a oportunidade de repensar e refletir a forma como as minorias foram ou ainda são tratadas, como a intolerância que mesmo nos dias de hoje persiste em existir.
Ele Está de Volta é o filme adaptado do livro homônimo de Timur Vermes em 2012. Esta incrível e maravilhosa sátira parte da jornada de Adolf Hitler, o qual é inexplicavelmente transportado para o ano de 2014 desde seus últimos momentos com vida no bunker em abril de 1945.
Dessa maneira, utilizando do humor negro, esta obra faz um dura crítica social e política dos dias atuais que, mesmo considerando a impossibilidade do cenário nazista voltar à realidade, sob o argumento de que “os erros cometidos foram aprendidos”, percebemos que sob diversas formas ele ainda se repete. Portanto, assim como o filme “A Onda” demonstrou ser plenamente possível o retorno de dias tenebrosos, o mesmo é demonstrado e criticado em Ele Está de Volta.
Em uma mistura de gêneros cinematográficos, muito bem empregados, nós temos, por exemplo, o documental, o qual mostra o ator, na pele de Hitler, entrevistando pessoas de diversas regiões da Alemanha, as quais expressam o mesmo ódio por imigrantes e muçulmanos como naquela época em que se repudiavam os judeus. Em uma abordagem ficcional, em contrapartida, Hitler tem de lidar com as novas tecnologias, a nova sociedade (que pode em um minuto amá-lo e em outro odiá-lo) e, dessa forma, tenta restabelecer o nazismo. Já em um ponto de vista jornalístico, o personagem é transformado em ícone da comédia, uma personalidade de grande sucesso, o que faz com que a mídia brigue com a concorrência (inclusive entre si), pois vê nele somente a oportunidade de lucros. Ao mesmo tempo, conta com a cultura da comunicação de massa atual, que cultiva a (des)informação e exposição desenfreada de opinião manipulada nos blogs, jornais, na rede de TV e no Youtube.
Extremamente engajado, não é à toa que Hitler demonstra um extremo interesse quando um cidadão comum expressa ideias radicais mas que condizem com as duas, enquanto dorme sentado de tédio quando alguém efetivamente se propõe a debater problemas econômicos de forma séria. Além disso, mesmo as piadas mais racistas têm conteúdo auto-crítico, uma reflexão por trás delas, o que faz dela uma obra muito rica, inteligente e complexa. Portanto, a comédia, o humor negro, o gosto ácido da sátira coloca em debate assuntos importantíssimos que quase nunca são enfrentados da maneira como deveriam ser. São assuntos que passam batido e não percebidos muitas vezes.
E na outra parcela de vezes, quando alguém efetivamente enxerga o problema e tenta fazer com que outros também prestem atenção nos rumos que a história/política/cultura/sociedade toma, a reação frequente e ordinária é a pessoa ser taxada de louca, e, deste modo, é descreditada, ridiculizada por todo o resto da população, da mesma forma como acontece na trama quando uma pessoa descobre a identidade do “verdadeiro Hitler” .
O fator metalinguístico, portanto, com a consequente mistura do que é encenação/realidade, que transita entre ficcional/fato, relativizando, portanto, toda a trama, é executado de forma brilhante para a mensagem final e mais importante do filme.
A sua beleza e a sua importância é justamente o fato de explorar o momento político e social que a Europa enfrenta, por meio desta ficção, demonstrando que mesmo décadas após a ditadura nazista, a figura impiedosa e preconceituosa de Hitler continua vivo como uma semente no coração e na alma das pessoas.
Ele Está de Volta é o filme obrigatório para os dias atuais.
Ele Está de Volta (Er Ist Wieder Da) disponível na Netflix
Crítica de cinema, autora do site Ícone do Cinema, colunista para o site Cabine Cultural, membro do Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema - ELVIRAS. É escritora e tradutora voluntária para a ONU.